A PROPOSTA – PARTE UM
capítulo 1
A visão embaçara completamente e a respiração já não mais ocorria.
A lógica e a proporção tornaram-se como forças descomunais e desconhecidas, não mais compreendia se de fato decolava ou caia, ou se girava velozmente. A visão turva, indefinida, adquirira aspectos lisérgicos e luminosos, indescritíveis, mas espaciais, algo semelhante a uma vibração intensa que lhe inflamava a mente e o que deveria ser uma ideia de corpo; pois já o havia deixado, no entanto, ambos estavam ali, mente e corpo, atados, transpassados pela dimensão de sua jornada.
Feixes de luz branca incandesciam a sua volta, uma sensação indolor lhe assaltara, a sensação de unidade tornara-se novamente amena, compreensível e suportável, como se o ar voltasse aos pulmões sem que se perceba, tornou a inspirar e exalar sem que de fato os fizesse, quando repentinamente, uma explosão de luz o engoliu.
A luz dissipou e se expandiu rumo ao infinito, um imenso deserto revelou-se a sua volta, sua superfície era composta pelos mais finos grãos que já vira e eram alvos como o quartzo em sua pureza, dunas de sutil encanto estendiam-se além do horizonte, não havia mais nenhum desconforto, estava de fato, outra vez presente; ciente e potente.
Não havia vento, no entanto, havia algo semelhante em substância e se assemelhava a uma corrente espessa e delicada de água morna. Contemplou a imensidão e sentira no peito uma vibração, esta era um diferente aspecto de inocência e então se sentiu cheio de paz.
– Então é isto? – indagou a si mesmo – acabei de deixar o mundo? É assim a morte?É assim para todos?
O deserto ali estava; como os desertos do mundo que acabara de deixar, permaneceria ali para sempre? Onde estava o sol? Foi então, que percebeu que não havia sol, apenas um céu que brilhava em tons amenos de âmbar, tinha aspecto monocromático, no entanto, ao olhar com precisão, percebia-se num perfeito casamento luminoso e cristalino, o sépia cintilante e o azul opaco cobalto.
Uma sensação de imersão profunda, ou sonolência, invadiu-lhe. Centenas de questionamentos pulsavam sobre sua mente, porém, evitou cada um deles, deixou que transitassem como nuvens a esmo, ou como um furioso tornado, longe de seu centro onde pulsava de forma surpreendente sua consciência.
Estranhas percepções assaltaram-no, era a sonolência do deserto que dera lugar a incrível e indescritível sensação de retorno. Parecia reconfigurar, sentia novamente, algo extremamente familiar, algo original, algo em seu âmago que jamais experimentara, mas sempre visitara e conhecia intimamente.
Pensou que talvez para a eternidade, nada ali aconteceria exceto a meditação, pois só havia a consciência pura, o silêncio imperturbável e nada mais. Sentou-se sobre a areia e fechou os olhos. Não deixaria que o tormento o invadisse, trazendo a lembrança que a esta altura parecia ínfima e distante, no entanto, podia visualiza-la sem se perder em sua influência:
Vira a si mesmo no momento em que se espantou com o movimento inesperado por trás dos arbustos, vira os vultos que saltaram e sua agilidade, vira os olhos dos saqueadores, olhos de fato cruéis, famintos e vazios, vira suas mãos rudes empunharem espadas, e sua lâmina refletia o sol a pino… O golpe fatal… E compreendeu que mesmo sem deixar-se influenciar, a lembrança era naquele deserto, insignificante.
Até que um raio lhe iluminou a memória, que como um acidente lhe assaltou os olhos da mente, uma âncora pesou em seu peito, e por sobre sua superfície dourada refletiu o rosto daquele, que quando andava falava, ria e amava, resplandecia encanto e mistério assim como o céu esplendoroso daquele deserto.
Voltara aos olhos da mente, a face daquele que sempre tangera o inalcançável e fizera alusão a cenários como o que se encontrava, voltara-lhe o som da voz daquele que mencionava o desconhecido e sabia coisas que eram desconhecidas entre os mais sábios, os místicos, ou os mais obscuros esotéricos.
Voltara-lhe aos olhos da mente a imagem daquele, que quando andava, falava, ria e lhe amava, através de todos os gestos que lhe eram seus; a extrema coragem, a ousadia, sua jovialidade e felicidade, a capacidade de animalizar-se de forma tão, tão sublime, o aroma que lhe era como o néctar das flores e o sabor que era como o da poupa das frutas maduras, encerrado sobre suas formas vulgares e surpreendentemente puras.
Era de se espantar, as memórias moviam as imagens como refrações, cujos símbolos, quaisquer que fossem, obtivessem peso e forma, envoltos num tecido de memória aparentemente frágil, mas indescritivelmente forte quando as lembranças traziam a tona a confusão e o caos, do que era, como um avesso disforme da ordem, o anseio apaixonado, perdido, lancinante, de estar ao lado daquele, que ao seu lado, fora como o sol, fundamental.
Ora, mas que ironia, foi então que abriu os olhos e tornou a olhar para o céu ambarino, nele não havia sol nem lua, no entanto, não havia dia ou noite, se ali estava, num deserto sem sol, onde não ventava, e a pele não queimava se descoberta, onde não havia ninguém, nenhum animal, ou miragem, como haveria de ser o sol, fundamental neste vasto desconhecido? Desejou ser como o deserto que contemplava; absoluto em si mesmo, nu em suas várias faces de areia clara, mas a âncora jazia em seu peito, e a lembrança daquele que amara tão profundamente lhe envolveu em breve angústia.
Tornou a fechar os olhos, as pálpebras evitaram a paisagem maravilhosa, concentrara os olhos da mente na eternidade, deixou que o momento o preenchesse com tudo o que lhe era misterioso e incognoscível, deixou afastarem-se as lembranças daquele que a tantos surpreendera, o monge rebelde que deixou o templo naqueles tempos longínquos, e a âncora se foi com eles, não havia mais nenhum pesar em seu interior, uma estranha sonolência o aplacou, deitou-se sobre a areia e ali estava prestes a entregar-se.
Entregar-se ia ao deserto, tornar-se ia o corpo das dunas e cada minúsculo grão, em sua microscópica variedade de cores e formas, e jamais seria carregado pelo vento, pois ali não tinha vento, ou tocado pela luz do sol, ou pela luz da lua, estender-se ia como um oceano de areia abaixo do céu cristalino e aderir-se ia à essência de toda substância desconhecida que os interligava, saudar-lhes ia sua divindade, tornar-se ia não só o deserto, tornar-se ia tudo o que o cercava. O silêncio reinava absoluto, no entanto, era como o som de milhares de vozes em uníssono, o mantra OM.
– Não faça isso! – Bradou uma voz rompendo o silêncio absoluto.
Dhenny