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A PROPOSTA – PARTE UM

capítulo 4

Dawa deixou que o silêncio o tomasse e estudou-se por alguns instantes: havia recordado seu nome e o nome daquele que tanto o fascinava: Tathagata! Agora podia visualizar com maior clareza a cena que ainda pulsava longe em seu psiquismo, como se fosse uma cena vaga, uma ínfima cena que não pertencia aquele lugar, e nem mesmo a si próprio.

Dawa pareceu pela primeira vez, absorto.

– Algo o perturba? – perguntou Bagwan.

Antes que pudesse responder, fora surpreendido pela sacada telepática do mestre.

– Quer saber onde ele está não é mesmo?

– Sim – respondeu Dawa.

– Ah – exclamou Bagwan desapontado – eu também! – concluiu, para a surpresa de Dawa.

– Estranho! – Disse Dawa, intrigado – pensei por um único instante, que soubesse seu paradeiro.

– Ora, e como iria saber?! – Respondeu Bagwan – se soubesse iria para lá imediatamente… Aposto que está em algum lugar muito, muito bonito! Era um jovem impressionante, me faz pensar exclusivamente em coisas belas e maravilhosas – Complementou a figura de Bagwan, que desta vez, pousava os olhos de águia sobre o deserto, contemplativos.

Num segundo, Dawa vislumbrou o que parecia ser uma cascata sutil, onde as memórias daqueles tempos de outrora fluíam livremente, e como se fossem projeções sobre superfícies líquidas as analisava, e nisso revia cada momento, como quando no monastério, o novo discípulo recusou o nome dado pelos mestres.

Lembrou-se de seus primeiros momentos juntos… O poço e o Louva-a-deus, e em pleno deserto o ar preencheu-se do aroma daqueles campos… Lembrou-se do frescor que havia na brisa da manhã, que era o mesmo que sustentava entre eles, tamanha afeição e reciprocidade, seus olhos inesquecíveis… Tathagata, aquele que vê as coisas como elas são, este era o significado que atribuía a si mesmo, e esta fora a forma como se apresentou ao templo!

E então Dawa lembrou-se dos demais mestres, cujos nomes lhe pareciam tão distantes e confusos que não conseguia pronuncia-los, ou sequer visualizar os traços complexos de seus anagramas, se lembrou do alvoroço, do olhar furioso de Ananda, do medo silencioso de todos aqueles monges, que na verdade era sua angústia… O medo!
– Mestre – Disse Dawa, irrompendo o silêncio – É verdade que os outros mestres… O temiam?

– Ah sim, claro que sim! – respondeu Bagwan.

– Por quê? – perguntou Dawa.

– Ele era perigoso, Dawa! – Exclamou Bagwan,

– O senhor o temia como os outros?

– Ora, de forma alguma, o admirava profundamente!  – respondeu Bagwan – Talvez, vocês dois, tenham sido os únicos discípulos que realmente tocaram meu coração!

– Nós? Porque nós? – questionou Dawa.

– Você – respondeu Bagwan – Eternamente perseverante, nunca foi difícil de lidar, e tampouco, fácil… Sempre nos trouxe as aflições que carregava em seu coração, sempre esteve de coração aberto para nós… Sempre esteve disposto a realmente aprender, E Tathagata, Tathagata era… Simplesmente… Unicamente… Tathagata!

Dawa não sabia o que dizer.

– Por que disse que Tathagata era perigoso?

– Tathagata possuía certa rebeldia, a mesma que um dia Buda sentira… Soube desde o primeiro instante que não pertencia aquele lugar, aquele jovem pertence ao grande mistério e é íntimo dele, como foram muito poucos. Isto era perigoso, estava mais próximo da fonte do que nós… Poderia facilmente, desestabilizar o templo, alterar o seu tom, perturbar os demais com seus questionamentos… Que curioso, não me lembro de nenhum questionamento da parte dele… Provavelmente é por que tinha as respostas, tinha acesso! O mesmo acesso que tivera Buda, Mahavira… Era de fato mais perigoso do que pensava! Era verdadeiramente livre!

Dawa sentira-se angustiado, será que um dia o veria de novo?  Havia chances de surgir ali, em meio ao deserto? Esta era a única sombra sobre seu coração e era uma sombra repleta de angústia, desejava mais que a tudo, rever Tathagata.

– Mestre – perguntou Dawa, Bagwan o encarou mais uma vez, compassivo – Não sentia nada pelos outros discípulos?

– Não, a não ser compaixão – respondeu Bagwan.

Neste momento Dawa fora tomado por uma terrível piedade que o pressionava em relação aos demais discípulos; tão dedicados quanto ele, tão empenhados quanto ele mesmo.

– E como é está compaixão? – perguntou Dawa.

– Um mestre e um discípulo são faces opostas da mesma moeda, nenhum dos dois concluiu sua tarefa…

– Quando, um mestre e um discípulo concluem a tarefa? – interrompeu Dawa, sem que reprimisse a curiosidade explosiva.

– Quando estão livres, um do outro – respondeu Bagwan, e como se, repentinamente, pudesse desabafar pela primeira vez na vida, golpeou as próprias vestes parando bruscamente em meio a areia que se deslocou curiosamente no ar, como se move a areia quando submersa;

– Ás vezes eu mesmo me perguntava se não havia algo errado… E as respostas vieram com aquele discípulo… Ele era livre, conhecia a liberdade…Tathagata nunca fora um discípulo, não teve um mestre e tampouco era um mestre, ele era algo mais fundamental…Todos os demais, não pensavam por si próprios, pensavam que pensavam – bradou Bagwan.

Dawa o encarou assustado.

– Tentavam com tanto empenho atingir a consciência de Buda, que falhavam desastrosamente antes mesmo de sequer tentarem, pois nunca tiveram a consciência de Buda, e nem mesmo sequer podiam percebê-la… Somente sondá-las, através de nós os mestres…

Dawa lembrou-se do monastério, de todos os monges meditando em silêncio, de todas as atividades monótonas, e a forma como Tathagata, rompera aquela terrível hipnose; trazia risadas que pelos mestres eram caladas, trazia contemplação, esta também lhe era reprimida.   Trazia o fascínio da ingenuidade perante as coisas mais belas das quais a natureza dispunha, como se fossem truques majestosos feitos para encantar os homens, mas mesmo nestas raras ocasiões, era censurado.

Então passou a dizer-lhes sobre seus equívocos, revelou-lhes segredos entre os mundos, todas suas manifestações foram ridicularizadas.

Nisso, Tathagata deixou o templo naquela noite de lua cheia e seguiria rumo á liberdade, e a verdade, ou talvez, estivesse apenas assumindo o que já existia dentro dele. E Dawa pensou que se não o tivesse acompanhado, estaria no monastério neste momento, vivo! Mas que tipo de vida seria esta? O que estaria fazendo? Retirando baldes do poço? Aquilo não era vida. Vida, que palavra misteriosa…

Repentinamente, Dawa sentiu os lábios curvarem num riso inesperado, de dentro, algo incontrolável irrompia, uma gargalhada explosiva e intensa ecoou pelo deserto.

Bagwan o encarou apavorado, e em seguida, riu também. As gargalhadas pareciam cruzar em pleno ar, em seus diferentes tons. Porém, Dawa, ao se lembrar do monastério, com Bagwan diante dele, era incontrolável a alegria que pulsava em seu interior.

Ria dos monges, e dos mestres, que um dia chamara de mestres, porém, não era um riso como deboche, ou a malícia da soberba, era um riso solto, solto daquilo que aqueles mestres e monges viviam; uma ilusão; não tinha cor, nem brilho, nem júbilo, não havia mistério como havia ali, no deserto.

Não riam do que faziam, ou de como eram, mas riam, por estarem livres, talvez mais leves, tão leves a ponto de rir sem que sentissem culpa ou pesar, riam na verdade, de si mesmos, da ideia que certa vez, tiveram de si mesmos…

Dawa riu, até que perdesse as forças, até que caísse, e Bagwan ria também, batia com os punhos e os calcanhares sobre a areia, que se deslocava no ar de forma sobrenatural, pareciam dois jovens, embriagados, alucinados.

Foi então que Dawa reparou que à medida que Bagwan ria, o mesmo rejuvenescia. As olheiras pesadas, as mãos enrugadas, calejadas e nodosas, tornavam-se mãos muito mais delicadas e belas, com os dedos longos e as unhas bem desenhadas.

A face corava e quanto mais rubra ficava, mais absorvia as rugas, revelando um jovem tão atraente que era irreconhecível, a não ser pelas vestes e o formato peculiar dos olhos que tinha: rejuvenescido, pareciam ainda mais com os olhos de uma águia.

– Mestre! – Disse Dawa, sem que contivesse a maravilha que acabara de ver – O senhor… Digo você…

Bagwan continuava a rir, a voz que lhe era grave exibia timbres agudos como ganidos juvenis inconsequentes.

– É mesmo de se espantar – Bradou Bagwan, ainda, tomado pelo acesso, e então Dawa entendera algo que ali havia se apresentado subliminar e maravilhoso.

Havia se libertado de Bagwan, e Bagwan havia se libertado de Dawa, mestre e discípulo, livres um do outro.

O jovem levantou-se sozinho, como se não se recuperasse ainda do acesso e encarou a imagem de Dawa, colocou as mãos rejuvenescidas sobre seu coração, e disse com leveza:

– Obrigado!

E no mesmo momento Bagwan desfez-se como se desfazia a fumaça do incenso em pleno ar, sem que deixasse vestígio algum.

Dawa não se espantara, compreendia; e a alegria e o júbilo transbordavam-lhe naquele momento.

Foi quando uma luz avermelhada despontou do horizonte, feito o sol nascente.

– Então há um sol – Disse para si mesmo, porém, a esfera de luz brilhante no horizonte tornou a mover-se em sua direção e Dawa viu que abaixo dela, havia um homem.

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